terça-feira, 6 de outubro de 2009

O dançarino de uma perna só (final)

Tinha um olhar estranho que a acompanhava enquanto fazia a meia volta. Não era um olhar de ódio, não era um olhar de repulsa, era apenas um olhar sem sentimento. Um olhar que não a admirava, não se emocionava com sua dança. Um olhar que também não era de desdém. Um olhar anulado de qualquer sentimento. E isso doía na menina que vivia dentro da mulher. A mulher que dominou a menina já não mais se importava muito. Roteiro de filme, com certeza. Mas a gente sabe que não era um filme, porque nem a menina e nem a mulher choraram. Elas há muito tempo não esperavam mais nada do homem de uma perna só.

Quando pequeno, ele sonhou em ser bailarino. Sonhou com o palco, com os aplausos, com as luzes, com o encantamento. Ele sonhou em pegar a mão da menina e bailar com ela na rua. Sonhou em grandes viagens, sonhou que os dois seriam aplaudidos por multidões em todo o mundo. Sonhou que seu pai não mais teria vergonha da perna ausente, sonhou que poderia dar à mãe o orgulho que ela sempre esperou sentir do filho perneta. Ele sonhou com um bailado, e por alguns momentos, ele teve o bailado em suas mãos.

[ele rodopiava a menina, e fazia passos mais lentos e desequilibrados. Ele apoiava a mão esquerda na cintura da menina, e segurava a sua mão direita. Pedia sempre calma, mas conseguia, fazer um, dois pra cá, um, dois pra lá. E rodopiava e a via girar, rodar a saia e sorrir um ângulo de 360º.]

E ver a menina adulta, dançando, sozinha ou acompanhada, mas nunca por ele, o fazia sentir o nada. O nada que fora a dança de infância, o nada que foram as inúmeras quedas, o nada que foi o grito da garota. VOCÊ NÃO PODE DANÇAR. Qualquer pessoa poderia ter dito isso a ele. Qualquer. Deus poderia ter descido de sua divindade e gritado isso pra ele. O demônio poderia ter vindo das profundezas infernais e berrado isso em seus ouvidos. Ele ouviria toda a humanidade gritando para ele, para o resto da vida.

Ouvir a voz da menina, irritada, sem paciência, sem vontade, desistente. VOCÊ NÃO PODE DANÇAR.

Todas as vezes que via a mulher que ela se tornara, ele lembrava dessas exatas palavras. E não sentia ódio, não tinha raiva alguma da menina, nem da mulher. Ele sempre fazia questão de vê-la dançar, e também não era por amor, por vontade de dançar junto, não era pela amizade, não era pelo que sobrou de sentimento após tantos anos. Tudo o que existia dentro dele, quando a menina-mulher rodopiava no salão, era o vazio. O vazio o acompanhou por toda a vida, e ele derramava litros de vazio no coração da menina, em cada dança, em cada volta, em cada sorriso de 360º.

A menina queria brigar com a mulher que dançava, vamos, convide-o mais uma vez, ele já terá esquecido. A mulher sabia que ele nunca esqueceria. A menina insistia, e a menina fez a mulher chorar por muitas vezes, por muitas danças. Mas a mulher não cedia. A mulher silenciou a menina. E não adiantava ela berrar, chorar, gritar, implorar pelas desculpas. Nem a mulher, nem o menino estavam mais interessados em desculpas.

VOCÊ NÃO PODE DANÇAR.

O homem sempre soube disso. O menino não precisava saber. O menino não estava mais lá. Adormeceu, talvez para sempre, antes de ouvir a menina gritar. Adormeceu quando o homem de uma perna só acordou.

Com a certeza de que nunca poderia dançar. E pôde viver bem com essa verdade. Porque sua vida tinha tudo para ser um filme. Mas a impressão é de que tinha sido apenas um sonho...

8 comentários:

Andarilho disse...

Hmmm, todo menino tem que crescer. A não ser, claro, aqueles que morrem jovens.

Achei que vc ia terminar o conto no mundo dos sonhos, ao invés disso, vc terminou ele no cruel e desumano mundo real. ;)

Ana disse...

Aninha, o menino adormeceu e, infelizmente o homem fechou os olhos. Aquele que não enxerga o lado bom de suas dificuldades está perdendo tempo de seguir em frente!
Espero que vc nunca feche os olhos diante dos seus obstáculos, pois SEMPRE eles acabam fazendo um sentido, sempre eles nos trazem uma irônica boa lição.
Grande beijo

Ana P. disse...

Andarilho: a realidade pode ser bem cruel, às vezes, mas lhe garanto, ela pode ser mto mais deliciosa que um mero sonho...

Ana: eu não fechei os olhos, resolvi enfrentar. Enfrentar em silêncio, sofrer a cada nova surpresa, mas... em silêncio. Sei lá, talvez vc tenha razão, talvez eu aprenda alguma coisa mesmo, talvez no final de tudo eu pense: é, valeu a pena.

Ou não. Mas não vou fechar os olhos. E Andarilho: eu não vou me afastar.

Andarilho disse...

E pq esse recado pra mim no final? Eu disse alguma vez pra vc se afastar daqui?

Ana P. disse...

Não daqui. Eu só não vou me afastar. Eu sou fraca demais pra isso.

Andarilho disse...

Vc quis dizer 'dele'? Oh well, cada um sabe a cruz que carrega.

Ana P. disse...

Talvez eu ainda não tenha atingido o ponto alto da humilhação, HUAHUAHUAHUAHUAHUAHUA! Depois que eu atingir esse ponto, quiçá eu desista. Blé!

Sardinha Mestre disse...

Reality bites... é.. porra. Eu esperava um final feliz, q inocencia a minha, mas é da minha natureza sempre acreditar, não importa o que aconteça.

E a fraqueza de não poder se afastar. Tbm entendo perfeitamente, mas as vezes da certo né ;)